O Retorno da Desigualdade
Por FÁTIMA BONIFÁCIO
PÚBLICO, Quinta-feira, 16 de Dezembro de 2004

Várias décadas de inovação pedagógica e transformação social conseguiram produzir o fracasso educativo que está hoje à vista de todos e que ninguém se atreve a negar. Esse fracasso educativo traduz-se no escandaloso número de chumbos que se verificam nos exames nacionais do 12.º ano; na péssima prestação em disciplinas básicas como o Português e a Matemática; na alarmante taxa de abandono escolar; e na lamentável ignorância da maior parte dos alunos que ingressam no ensino superior e que ou desistem do curso a meio do caminho ou saem de lá quase tão incultos como entraram. Esta realidade tem de ser invertida e não tenho dúvidas de que será invertida - mas temo que isso venha a acontecer por formas e vias que, subvertendo radicalmente os objectivos que presidiram à criação da escola pública universal, farão dela um lugar de aprofundamento e cristalização das desigualdades sociais de origem dos que a frequentam. Actualmente, a escola pública já caminha a passos largos para se tornar num factor de discriminação social.

A transformação social que ocorreu nas últimas décadas era inevitável e desejável. Centenas de milhares de jovens invadiram o sistema de ensino em pouco mais de uma geração; a explosão repercutiu-se no ensino superior, que passou de 40.000 alunos no início da década de setenta para 400.000 na actualidade. Este facto, em princípio positivo, criou dificuldades acrescidas à observância de níveis de exigência imprescindíveis para que a escola cumpra eficazmente a sua função de ensinar e qualificar. De repente, a escola confrontou-se com um universo de alunos em cujas casas nunca existiram livros e cujos pais não sabem falar português. Esta carência cultural de origem produz mais e mais graves consequências do que a mera dificuldade em ensinar a língua, a matemática ou outra disciplina qualquer: conduz à percepção da escola antes de mais como um instrumento de integração e ascensão social, em lugar de ser prioritariamente encarada como um meio de desenvolvimento intelectual. Este facto é particularmente nítido na Universidade. Ter um filho doutor ou ser sr. doutor converteu-se na ambição suprema de milhares de pais e alunos. O grau académico é visto em primeiro lugar como uma promoção social, e só muito secundariamente, e raramente, como o atestado de uma qualificação intelectual. Por isso a maioria dos estudantes não acha que seja preciso estudar, acha que basta passar.

Coincidiu tudo isto com um processo de declínio da autoridade em geral que não apenas não favorece uma relação professor-aluno propícia à aprendizagem, como criou gravíssimos problemas de disciplina que prejudicam irremediavelmente a escola como um lugar de estudo, esforço e aplicação. Desapareceu o respeito - sim, o respeito - indispensável para que a palavra do professor seja escutada com a devida consideração. Muitos professores, é preciso dizê-lo, também não fazem muito para merecer essa deferência; o laxismo contaminou uma parte da classe. Depois, a escola tornou-se palco quotidiano de desmandos, desacatos e até agressões não raro dirigidas contra os próprios docentes. Outro resultado não seria de esperar da implementação de um conceito de "comunidade educativa" em que os alunos são convidados a participar, em pé de igualdade, na vida escolar, à semelhança da "polis" idealizada no "Contrato Social" em que todos mandam e portanto ninguém obedece senão a si mesmo.

Mas a crise da autoridade do professor não resulta só do lunatismo de quem quereria moldar a escola à semelhança de uma democracia radical; nem resulta apenas da rebeldia e má educação de jovens pouco ou nada predispostos para olhar o professor como alguém a quem é devida uma deferência particular ou para respeitar a sala de aula como um espaço onde se exige silêncio e concentração. Ela resulta também de um efeito de erosão provocado por duas décadas de relativismo cultural agressivo que rebaixou a palavra do professor ao nível de uma opinião como outra qualquer, nem mais nem menos válida do que "os saberes" ou as "competências" que os alunos adquirem na sua experiência quotidiana de vida e que a escola democrática acarinha e valoriza com o objectivo de fazer toda a gente sentir-se igual - os que leram Eça de Queiroz e os que leram o Harry Potter.

Depois, o ambiente cultural mais amplo em que a escola se insere também lhe é adverso. A cultura juvenil privilegia o prazer e o lazer em detrimento do esforço e do estudo, e a leitura é considerada uma prática obsoleta quando se pode procurar tudo na Internet. Além disso e de um modo geral, a cultura difusa na sociedade valoriza a sensibilidade e a intuição espontâneas em detrimento de uma racionalidade crítica informada. Hoje em dia toda a gente tem direito a achar... porque acha ou porque sente, e de um modo geral todas as opiniões se equivalem e devem ser respeitadas - mesmo que não sejam respeitáveis. Finalmente, a palavra do professor, veículo de verdades relativas e no limite arbitrárias, incorre ainda na desconfiança que envolve a escola como aparelho de reprodução da ideologia dominante. É certo que esta formulação tosca e brutal caiu um pouco em desuso, mas não assim o seu sentido e os pressupostos que lhe subjazem. A presunção de que nem todos os "saberes" são válidos porque não resistem a um teste de consistência intelectual é considerada uma ideia reaccionária porque contrária à suposta igualdade das pessoas e das culturas.

Foi neste contexto, cujas linhas de força já têm algumas décadas, que vieram inscrever-se as modernas teorias educativas. Já sabemos quais são os seus tópicos favoritos: o professor tem de ser um camarada e a escola um lugar lúdico; deve propiciar a expansão da livre criatividade do aluno e o desenvolvimento da sua preciosa personalidade; não deve ensinar nada cuja utilidade não seja evidente; deve convocar a permanente participação do aluno; só deve ensinar coisas que se "compreendam" e nada que se decore; deve estimular a capacidade crítica dos alunos; não deve maçá-los com matérias áridas ou demasiado complexas; não deve sobrecarregá-los com trabalhos de casa que lhes roubam o tempo para as brincadeiras tão indispensáveis à sua felicidade. O clamor que recentemente se levantou contra os TPC, considerados uma "agressão" contra os "direitos das crianças" (sic), revela bem até que ponto se perdeu a noção de que aprender custa esforço e trabalho. Finalmente, a escola não deve discriminar. Todos os alunos têm capacidades. Aqueles a quem porventura falte a inteligência e a predisposição para o trabalho possuem outro tipo de qualidades não menos meritórias. Merecem por isso passar. Ou pelo menos não merecem chumbar.

A escola deixou de poder exigir a fim de poder integrar, e por isso nivela por baixo. Este projecto pedagógico é, na realidade, um projecto político e social. Aprender, adquirir conhecimentos, tornou-se um objectivo secundário ou em todo o caso subordinado ao fim principal de conferir um grau académico que funciona como um passaporte para a inclusão social. A escola deixou de ser um projecto intelectual e tornou-se no instrumento de uma política social. O resultado está à vista e, inevitavelmente, já surgiu a reacção. Quem pode coloca os filhos em escolas privadas, onde mais disciplina e mais exigência produzem alunos mais bem preparados. A contínua degradação do ensino público criou um mercado para o ensino privado, a que só os mais abastados têm acesso. Não virá longe o tempo em que o que importa não é o grau académico, que mesmo os piores alunos poderão exibir, mas sim o estabelecimento de ensino onde foi adquirido. Nesta competição, os ricos estarão de novo em vantagem. Ao nível do secundário, a tendência já está instalada. Ao nível do superior, a Universidade Católica constitui um exemplo de como as universidades privadas se podem instalar entre as melhores ou acima da maior parte das públicas. Desprestigiada e degradada, a Escola Pública Universal converte-se fatalmente num factor de desigualdade.

*Historiadora